Está em curso no Senado Federal o Projeto de Lei n° 2796 de 2021, também conhecido como PL dos Jogos Eletrônicos e Fantasy Games, que tem por objetivo estabelecer um Marco Legal para estes segmentos da indústria de jogos.
De autoria do Deputado Federal Kim Kataguiri (União Brasil), o que começou como uma proposta inocente, apresentando alguns problemas conceituais ocasionados pela falta de consulta a representantes do setor de jogos, está se tornando uma das maiores dores de cabeça para a indústria nacional do setor e porta de entrada para manobras que buscam descaracterizar um tipo específico de produto, os Fantasy Sports ou Jogos de Aposta Esportiva, de sua real natureza como Jogos de Azar antes de uma eventual regulamentação.
O que ocorre é que, no período em que esse PL está em trânsito entre as casas, sua proposta recebeu a adição de tópicos relacionados aos chamados Fantasy Sports, como Rei do Pitaco e Cartola FC. Isso ocorreu por conta do início dos diálogos para um Projeto de Lei para regulamentar as atividades de Gambling no Brasil.
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Assim, como forma de evitar ser enquadrado nessa categoria, o que implicaria carga tributária e regime de operação pertinentes ao que uma atividade dessa natureza deve possuir, as pautas desse segmento foram buscar o abrigo mais próximo e menos consolidado, a indústria de jogos.
A inclusão dos fantasy sports e seus problemas
A adição dos Fantasy Sports nesse Marco Legal cria diversos problemas e fragiliza um texto que já possuía diversas ressalvas, criando um ambiente de insegurança jurídica e prejudicando os mecanismos já existentes para o setor. Se uma primeira olhada não desperta nenhum tipo de incômodo imediato, com a proposta parecendo bastante condizente dentro de sua natureza, podemos analisar os pontos mais críticos para entender as reais consequências dessa aprovação.
Começando pelo Parágrafo 1°, que tipifica o que é Jogo Eletrônico. Desconsiderando que a definição utilizada é extremamente não ortodoxa, não tendo embasamento nenhum em bibliografia acadêmica ou especializada do setor, alguns tópicos saltam aos olhos.
O principal problema acontece ao apresentar que jogos eletrônicos são programas que contém elementos gráficos e audiovisuais, em vez de caracterizado como um produto de natureza tecnológica e audiovisual como se entende atualmente, o Parágrafo retira os jogos eletrônicos do seu lugar atual como audiovisual interativo, fruto de uma redação que teve que ser construída às pressas dentro de uma dinâmica apressada de tramitação que escutou, mas não ouviu, várias vozes do setor, inclusive a Associação Brasileira de Empresas Desenvolvedoras de Jogos Eletrônicos (ABRAGAMES).
Na prática, isso significa que o setor perde o acesso aos recursos vindos do Fundo Setorial do Audiovisual (FSA) e perde sua natureza cultural ao ser definido como um software e não dentro da dimensão de economia criativa. Trocando em miúdos, nacionalmente o setor teria perdido mais de R$ 50 milhões de investimento via Lei Paulo Gustavo somente em 2023 se já tivéssemos esse PL aprovado, com o Ceará perdendo sozinho mais de R$ 2 milhões.
Dentro disso, vale destacar que o objetivo desses ajustes no PL não é a obtenção de incentivos, mas evitar a precarização da atuação das empresas do setor e a criação de casos omissos ou precedentes perigosos que podem impactar o setor e outras verticais de tecnologia e inovação caso não sejam corretamente tratados. Manter os benefícios existentes é uma consequência, ocasionada pelo esforço de décadas das instituições do setor para estabelecer as bases de compreensão que são utilizadas hoje na esfera federal.
Problemas de conceito e escrita no marco
Curiosamente, o texto também define no Parágrafo 2° que não é considerado Jogo Eletrônico as máquinas caça níquel ou outros jogos de chance semelhantes. Correto. Mas se você já está tipificando que Fantasy Sports são jogos eletrônicos, essa é a sua forma de isentar esse segmento da categorização como jogo de azar, o que é uma manobra bastante inteligente, mas desonesta.
Esse Parágrafo, inclusive, já existia no texto original e serviu como principal chamariz para que a pauta dos Fantasy Games se construísse dentro e ao redor do Projeto de Lei, uma vez que isso cria as vantagens e escapes mencionados acima.
Vale destacar também que as definições aplicadas para jogos eletrônicos colocam, ao mesmo tempo, software e hardware. Além de estar errado conceitualmente, já que um console ou computador em si não é um jogo, mas uma plataforma, também cria uma brecha legal que vai complicar a tributação sobre os produtos do segmento, já que eles precisam ser entendidos como software ou hardware para existir uma alíquota de impostos coerente. Caso não seja feito, teremos o primeiro caso do Jogo de Schrodinger, que é tudo e não é nada ao mesmo tempo.
O segundo ponto está presente durante todo o texto, referente a forma indissociável que jogos eletrônicos e Fantasy Sports são tratados, quase como se fossem uma coisa só. Isso fica mais estranho a partir do Parágrafo 4°, quando a aplicação dos jogos eletrônicos em áreas como Educação, Saúde e afins é mencionada.
Claro que ninguém espera que sejam usados jogos de aposta esportiva nas escolas, apesar da lei como está escrita permitir isso, mas isso cria problemas para que recursos vindos dessas áreas orientados para iniciativas de pesquisa e inovação possam ser utilizados para a criação de Fantasy Sports ou o financiamento de uma operação dessa natureza. Parece absurdo que isso seria aprovado por qualquer parecerista ou departamento jurídico, mas se está na lei é permitido.
O investimento em PD&I e seus usos
Outro tópico que parece coerente na teoria é o Parágrafo Único do Artigo 5°, que versa sobre o investimento em jogos eletrônicos ser tratado como investimento em pesquisa, desenvolvimento e inovação.
Novamente, o fato de jogos eletrônicos e Fantasy Sports estarem indissociados nesse PL cria problemas. Com essa abertura, recursos vindos de fundos e iniciativas de PD&I já existentes, como o FINEP Startup, BNDES Garagem e FNE Inovação poderiam ser utilizados para Fantasy Sports assim como para jogos eletrônicos, com a diferença que os Fantasy Sports são quase que integralmente já financiados por grupos internacionais com alto poder de captação de recurso, enquanto a indústria de jogos brasileira é composta por pequenas empresas independentes. Um pouco desproporcional, não?
Fora, claro, o fato de que isso abre caminho para a injeção de recursos nesses Fantasy Sports com uma incidência muito menor de impostos, já que se trata de investimento de PD&I. Colocando isso junto com o fato de que apostas esportivas e gambling no mundo inteiro são alternativas já conhecidas para lavagem de dinheiro, cria-se uma janela arriscada que transformaria o Brasil em um caminho certo para esse tipo de prática, já que também seríamos o único país do mundo a ter um Marco Legal que une jogos eletrônicos e Fantasy Sports, curiosamente.
Por fim, nesse bloco, vale ressaltar a tão falada aplicação da Lei do Bem para Games. Ora, ela já pode ser muito bem utilizada por empresas de Lucro Real que atuam no setor, em casos emblemáticos como a Microsoft Brasil.
Porém, a grande maioria das empresas do país que atuam com Jogos são Micro e Pequenas Empresas, aderentes do SIMPLES Nacional, o que impede que elas tenham acesso legal a esse incentivo e que, com o PL, continuarão sem acesso ao mesmo por seu regime tributário. Por outro lado, alguém passa a ter esse acesso facilitado. Adivinha quem?
Formação profissional e pesquisa
Chegamos no Artigo 7° que resume muito dos problemas que o setor já sofre em sua imagem enquanto formação profissional. É um erro tratar jogos eletrônicos como uma área exclusivamente de tecnologia exatamente pela nossa natureza multidisciplinar e necessidade de profissionais diversos, de designers e ilustradores a profissionais de som e, claro, programadores.
Assim, um Artigo que trata exclusivamente da formação profissional para programação retira a diversidade necessária para realmente formar profissionais de qualidade para o setor e direciona essa possibilidade exclusivamente para aplicações que não trabalham de forma intensa a natureza multimídia do setor, como por exemplo os Fantasy Sports.
A descrição ampla também dos equipamentos necessários é genérica demais para gerar algum retorno e auxiliar realmente no que deveria ser o estabelecimento dos marcos para a definição da atuação do setor no país.
Este, aliás, é o grande problema do PL como um todo. Desconsiderando o fato dele estar sendo utilizado de escudo por um segmento estranho por pura conveniência e conivência dos parlamentares, o PL não toca nas maiores necessidades atuais, como a definição de um número no Cadastro Nacional de Atividade Econômica (CNAE), a regulamentação dos impostos sobre o setor e a criação de mecanismos eficientes de apoio à atuação empresarial de um segmento que, à despeito da negligência governamental, cresce ano após ano e já fatura centenas de milhões de dólares todos os anos no país.
O objetivo real de um marco de games
Nosso objetivo com um Marco Legal de Jogos Eletrônicos não é incentivo financeiro governamental ou qualquer coisa assim, mas o estabelecimento de mecanismos compatíveis com nossas necessidades para operar empresas e gerar riqueza, já que a briga maior é contra o sistema jurídico, legal e tributário arcaico que o Brasil possui.
De quebra, com os recentes movimentos do setor para tentar ao menos alterar a proposta para que se torne menos danosa, também estamos expondo uma série de hipocrisias e problemas nas nossas casas legislativas, da forma como o Relator do PL, o Senador Irajá (PSD), evitou falar com o setor e pôs o projeto em regime de urgência após pressionado por mudanças; a manipulação da narrativa por parte do Deputado Kim Kataguiri fazendo crer que a iniciativa auxiliava o setor quando na verdade cria todas as dores de cabeça possíveis; até a omissão dos nossos próprios Senadores, com a dificuldade em contatá-los e o receio de alguns deles de confrontar um Senador de Centro para não gerar desgaste político, à despeito do fato de que o Ceará, que hoje é uma das referências em desenvolvimento de políticas públicas para jogos no país, precisa de um ambiente legal e estável para continuar se desenvolvendo e executar seu Plano Setorial da Indústria de Jogos.
No momento em que esse artigo está sendo escrito, 14 de Junho de 2023, a sessão do Senado foi cancelada por falta de quórum, resultado do feriado do dia seguinte. A votação do PL, portanto, foi adiada para a próxima semana e, após isso, também haverá a possibilidade de apresentação de emendas antes da sanção presidencial.
Esperamos, através de todos os esforços que estão sendo realizados, que esse PL possa ser ajustado e trazer algum resultado positivo ao setor, uma vez que sua forma atual irá causar danos críticos irreversíveis ao setor e desconstruir anos de esforço das várias Associações Regionais, Empresários e Profissionais que trabalham em um dos segmentos mais inovadores e com alto potencial do país, mas que são diariamente desrespeitados por conta do interesse de grupos com maior poder econômico e parlamentares de atitudes questionáveis.